BEDA / Penetrante

Quando, pela noite adentro, eu a penetro
Não sou eu, nem de longe, nem de perto
Eu sou outros, eu sou diversos, eu sou forte
É meu tempo, é cedo, é tarde, eu sou a morte

No corpo dela, eu me recordo, eu me visito
Estou em meu espaço, eu gozo, eu grito
Também sou eu, sou dela, eu suo, eu me sujo
É um mundo de pureza para qual eu fujo

Assim, eu, ser penetrante pela noite escura
Busco de peito aberto, a minha sorte futura
Por mim, para mim, com ela, por ela, para ela
Para, juntos, amarmos em realidade paralela…

Foto por Adalat Naghiyev em Pexels.com

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.

BEDA / Das Dores E Ratinho

Das Dores, conhecida como Jaqueline, carregava imensos olhos verdes, quais duas bandeiras nacionais desfraldadas em desfile no Dia da Independência. Em torno deles, o seu rosto, ainda interessante, encimava um corpo ainda atraente de formas brasileiras o suficiente para entusiasmar os mais ufanistas. Essa forma física lhe proporcionava condições suficientes para sobreviver em sua profissão, ainda que não fizesse o sucesso de vinte anos antes.

Ratinho era um velho músico aposentado, mas que ainda tocava esporadicamente nas noites paulistanas o seu trompete americano, comprado nos bons tempos em que saía de salões de baile para programas de televisão ou estúdios de gravação, quase sem intervalo, há quarenta ou cinquenta anos antes.

Por caminhos marcados pela mesma pouca iluminada noite madura, encontraram-se num bar de esquina do Bexiga. A voz profunda e de acentuação nordestina chamou a atenção de Das Dores por lembrar a de seu pai, homem rigoroso que a expulsou de casa quando, adolescente, se deitou com um dono de posto de gasolina de sua cidade, no interior do Ceará. Fascinada pela possibilidade de ascender no conceito de suas amigas, bonita e despachada, chamou a atenção de Seu Romarinho, o sujeito mais rico que conhecia. Desgraçou a vida dele e possibilitou que a sua ganhasse rumo em direção a São Paulo.

Ratinho, que tinha esse apelido por ser branquinho como um filhote recém-nascido do roedor, depois de uma apresentação em um baile de dança de salão, decidiu esperar o horário do seu ônibus madrugador a tomar um conhaque batizado. Falava pouco, sorria muito e seu tamanho compacto lhe conferia um toque de presença quase alienígena. A sua pele descamava e poderia até parecer repugnante se não fosse a sua evidente simpatia. Estranhou quando aquela mulher bonita se aproximou e puxou conversa.

Com os seus cabelos espetados agora tão brancos que pareciam brilhar no escuro, Ratinho estava acostumado a ser rechaçado até mesmo por prostitutas que procurava. Não queria àquelas que fariam qualquer coisa para obter o dinheiro da droga que as mantinham funcionais. Naquela idade, mais do que qualquer outra coisa, ele apenas queria conversar. Era absolutamente sozinho. Nunca se casou. Os seus parentes mais próximos moravam longe. Bastante resignado com a sua condição de terceiro trompete, sentava tão perto da beira do palco que certo dia caiu e desapareceu sob a estrutura. Desmaiado, só deram por sua ausência no intervalo entre uma seleção e outra.

Das Dores pareceu genuinamente interessada em conhecê-lo. No decorrer da conversa, se surpreendeu com a candura daquele senhor desajeitado e de gestos parcimoniosos. Principalmente, o incentivava a falar o máximo que pudesse. O som daquela voz a fazia retroceder anos dentro de sua alma. Era como um acalanto vindo de longe. Percebeu que sentia mais saudade de seu pai do que gostaria de admitir. Ele nunca a perdoou e o dinheiro que lhe enviou ao longo do tempo nunca foi aceito pelo Senhor José. Ao amanhecer, se despediram e marcaram um encontro para breve. Ratinho precisava voltar para a casa. Estava cansado e sabia que Arturo, seu gato, o esperava ansioso pelo leitinho da manhã. Jaqueline precisava ainda faturar algum para Das Dores comer algo e ainda levar um presentinho para a filha da vizinha que aniversariava.

Depois daquela primeira vez, Das Dores e Ratinho se tornaram grandes amigos. A madrugada sempre terminava num dos quartos dos hotéis do Centrão. Quase ninguém compreendia aquele relacionamento, mas que deu a Ratinho uma receptividade mais calorosa por parte de seus pares da noite. Durante os encontros, Das Dores pedia a Ratinho que contasse as suas histórias, ainda que repetidas. Em determinada ocasião, ela percebeu que encontrava muito prazer em se masturbar ao ouvi-lo, enquanto ele adorava tocar as suas fartas mamas e estapear a sua bunda rotunda. Era só o que o seu coração fraquejado lhe permitia fazer.

Um dia, Ratinho decidiu morrer. Já não conseguia alcançar as notas exigidas pelas partituras. Sabia que logo não seria mais chamado para trabalhar e isso o martirizava. Nem tanto por causa do dinheiro, mas pela companhia que desfrutava de velhos amigos dos tempos áureos da música no Rádio e na TV. Além disso, um a um dos seus companheiros estavam partindo ou não conseguiam mais tocar. Programou um encontro com Jaqueline, a sua Das Dores, e lhe avisou que aquele dia seria especial, a comemoração de uma data importante – a sua primeira apresentação na TV Rádio Clube de Pernambuco, em 1966.

Ratinho pediu para que Das Dores vestisse seu vestido mais bonito, a levou para comer em uma boa cantina e, de táxi, a conduziu para um motel de classe. Ao final de três horas, pediu para penetrá-la. Surpresa por vê-lo ereto, amorosamente abriu-se e o recebeu. Um minuto e dois suspiros depois, seu coração parou de bater no peito de sua amiga e gozou de seu descanso merecido.

Foto por Kendall Hoopes em Pexels.com

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.

BEDA / Cadeados Invisíveis

“Nenhuma das chaves que possuía podia decifrar os segredos dos [invisíveis] cadeados”, por Flávia Côrtes, em As Estações

o que queremos nem sempre é o que queremos
muitos são desejos que queiramos que os queiramos
outros são quereres emprestados de gerações mortas
estamos vivos desejando nos libertarmos de tantas demandas
são fôrmas externas que nos modelam desde tempos imemoriais
violência contra os nossos corações imaturos
vá por esse caminho de destino conhecido ficará a salvo
me salvará de que?
se quero experimentar o caminho tortuoso da indecisão e do inesperado?
estabilidade sensaboria insensibilidade 
sem uma dor para chamar de minha?
perderá tempo oportunidades se perderão…
perdição é o que eu quero se não gosto do que espero
e o que esperam de mim…
há quem queira decifrar segredos de cadeados atados a ferrolhos pesados
quero o impossível decifrar códigos 
de  invisíveis cadeados de querências sem fim
ir pelas manhãs de cidades fantasmas
adentrar por portas sem batentes seguir por portais
para o outro lado de muitos mundos
invadir campos não explorados
e não cercados de horizontes marcados
lusco-fusco de meu olhar atravessado e profano
quando quero chegar não existe resiste
é o quanto desejo me aprofundar 
me aproximar do âmago
do nada redentor e definitivo
estarei morto e feliz a sentir que não tenho fronteira
apenas um estado de nenhuma beira…

Foto por Mayumi Maciel em Pexels.com

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.

BEDA / Hellen

Hellen era daquelas mulheres que não passava despercebida por onde andasse. Algo no seu passo confiante, seu porte de espinha ereta de bailarina que foi, rosto expressivo de quem conhecia a si mesma a distinguia. Professora universitária, parecia ter a resposta certa para qualquer assunto. Sorriso aberto, bom copo, da mesma maneira que atraía, assustava homens e mulheres. Solteira por convicção, escolhia com quem sair como quem tivesse a disposição uma lista previamente estabelecida. O que não correspondia à realidade. Diferente do que pudessem presumir, Hellen usava bastante a intuição para consumar os seus encontros. Quase sempre entrava e saía incólume desses embates sexuais em que a paixão tinha hora de início e fim.

O seu admirável autocontrole sofreu um abalo quando conheceu um casal na casa dos 30 anos que, bastante ousado, a abordou em seu bar preferido. Após duas horas de uma divertida conversa, a chamaram para uma noitada íntima em sua casa. Apesar de passar dos 60, essa modalidade de diversão nunca havia experimentado. Cria que pudesse controlar melhor as relações com parceiros masculinos ou femininos unitários. Antes tivesse evitado aquela noite na qual nunca havia sentido tanto prazer e paixão. Derreteu-se com a coreografia inventiva da moça que feito Isadora Duncan, performava movimentos inéditos e criativos, além do uso da língua com uma desenvoltura soberba. E pela fluidez do rapaz que sabia o que fazer com o seu pau, no tamanho ideal para a satisfazer com delicadeza e potência.

Assisti-los também era um deleite. Hellen gostava de filmes pornôs bem feitos, que saíam do lugar comum e que a estimulassem enquanto usava os seus brinquedinhos quando estava só. Vê-los atuando presencialmente superava em muito qualquer dos que assistira nos últimos anos. Essa aflorada pulsão sexual carregou durante séculos de sua vida e que reprimiu durante seu tempo de titular da cadeira de Filosofia. Ela frequentemente ficava atraída em série por colegas e alunos, mas no último ano de faculdade deixou emergir como lava de um vulcão adormecido. Decidira se aposentar e fechar o ano letivo com chave de ouro. Não se importava em distribuir notas para os alunos mais dotados em tamanho e menos aquinhoados de talento para a Filosofia. Melhor assim. Eram mais ativos, confiantes e menos verborrágicos.

Agora, esse casal lindo e sensual a derrubando de seu pedestal de senhora do destino. Estava apaixonada. Para ela, terminaria essa troca desenfreada de parceiros. Após o terceiro encontro, perguntou a eles se não gostariam que se unissem como um Trisal. De maneira educada, o que a feriu mais ainda, os dois disseram que queriam se manter apenas como um casal. Que a achavam maravilhosa, linda e tesuda, mas que uma terceira pessoa poderia instabilizar o que tinham — uma conexão e integração maravilhosas. Eles aceitavam a entrada eventual de uma mulher ou de um homem, mas sempre tendo os dois como ponto de equilíbrio. Hellen, sorriu como se fosse mais para si e se despediu dos dois amantes. Ferida, lamberia as feridas por um tempo, amargando a saudade que tentaria mitigar enfileirando casos elegidos em aplicativos, que passou a utilizar. Encontros nos quais muitas vezes os parceiros nem se apresentavam ou sequer emitiam qualquer palavra durante a hora de sexo desesperado.

Foto por Pascal Bronsert em Pexels.com

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.

BEDA / Passado?*

Esta é uma lembrança em que tudo se justifica. Tudo passou. Nesta imagem, de 2012, estamos, eu e meu irmão, atuando pela Ortega Luz & Som para sonorizarmos a apresentação de Elvinho Álvaro Neto no Beale Street Memphis, que apresentava atrações musicais em seu pequeno palco. Hoje, o local está fechado. A Ortega Luz & Som está com as suas atividades paralisadas, pois os artistas, a quem damos suporte técnico para se expressarem, também estão. Enfrentamos um período em que celebrar a vida em público virou risco de morte, como disse Cazuza à respeito de seu prazer. Devemos ter em mente que essa é uma condição excepcional que o comportamento errático do brasileiro, auxiliado por uma ideologia destrutiva e desgovernada do governo federal, fará que seja infelizmente estendida para 2022, como disse que ocorreria no final de 2020.

*Texto de 2021

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.